sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O caminho das frutas



Esperança e medo na viagem pelo cerrado

A noite escura foi-se aos poucos iluminando e uma luz amarela dissipou as sombras noturnas, em passos compassados, comendo chão. Ficam para trás somente as pegadas e a poeira que levantam os cascos dos animais. Consigo, a esperança de achar novas terras habitáveis para fixar morada e o medo de encontrar pelo caminho os donos da terra – os índios. Percorrer passagens procurando a cabeceira dos córregos, trilhas feitas pelos Bororos, todo cuidado é pouco, porque esta tribo indígena que habita a região sudeste da província de Goiás é conhecida por sua coragem e selvageria. Há muitas histórias de ataques sangrentos a posseiros que invadem seus territórios.

Os índios Bororos fazem sazonalmente uma peregrinação. Deixam as florestas de Mato Grosso em uma espécie de penitência até uma tribo em Goiás. Lá há um encontro entre todos os índios da região. Durante vários dias os Bororos realizam rituais religiosos. O trajeto é repleto de árvores frutíferas, por isso os índios chamam de Ivapé, termo que significa caminho das frutas.

O raiar do dia os alcançou pelo caminho. Saíram bem cedo para aproveitarem o clima fresco da madrugada. Na bagagem, carabinas, ferramentas e o estrito necessário para comer. Dois cargueiros com bruacas levam as tralhas de viagem, a cozinha e os mantimentos. O fogão consiste apenas em pedras sobrepostas, uma fornalha improvisada e um tripé sobre o braseiro para suster caldeirões de ferro. Passo a passo percorrem a distância de Jataí às margens do rio Araguaia.


Dois ranchos de palha e um paraíso no quintal

No alto de um morro, próximo a uma nascente de águas cristalinas, foi o lugar que Manuel de Carvalho Bastos e João José de Moraes - o Cajango - escolheram para construir as primeiras moradias do vilarejo de Santa Rita dos Impossíveis. No seu quintal um dos rios mais importantes rios do Brasil, o Araguaia. Eles saíram de Jataí com suas famílias em meados de maio de 1889 para fundarem o patrimônio de Santa Rita dos Impossíveis.
O povoamento da vastidão de terras desconhecidas do Brasil regia-se por códi
gos próprios, sociais, morais e financeiros. A fazenda Araguaia, adquirida em 1854 pelo regime de posse, começava na Serra da Urtiga e se estendia até a cabeceira do Rio Araguaia. Seu proprietário, José Manoel Vilela, juntamente com sua esposa, Leocádia Perpétua de Silvéria, doaram verbalmente para a igreja Católica dois mil alqueires de terra para a formação do patrimônio de Santa Rita dos Impossíveis.

O quilombo Moita Redonda

Abaixo do novo povoado de Santa Rita dos Impossíveis, existia no fim do século XIX um quilombo chamado Moita Redonda, no qual moravam escravos libertos. Esta comunidade vivia às margens do córrego Kilombo, batizado posteriormente em homenagem àquela população extinta. Como profundo conhecedor e admirador da história de Santa Rita, Espírito Santo Ferreira, que afirma ser “apenas um curioso”, relata que desde menino sempre se interessou pela história e ouviu dos mais velhos vários relatos dos primórdios da colonização do município de Santa Rita do Araguaia.

Ele diz que no quilombo Moita Redonda existia uma igreja dedicada à padroeira Santa Rita dos Impossíveis, mas com a criação do novo povoado, outra igreja foi construída. Depois da fundação do patrimônio os moradores do quilombo perderam espaço e com o tempo se dispersaram. Ele revela que existe uma história obscura sobre a extinção dessa população. Diz ainda que do mesmo modo a mudança do povoado de Santa Rita dos Impossíveis, para o local onde é a atual sede do município esconde fatos que prefere não revelar, pois traria à tona um conflito que o tempo tratou de apaziguar.

O Comércio de cima

O local no qual foi construído o primeiro vilarejo transformou-se na fazenda Santa Rita, de propriedade do português José Manoel Fernandes Salgueiro e sua esposa Maria Júlia Salgueiro, mais conhecida por Dona Julica, a qual é responsabilizada pela mudança do povoado. Mesmo com a mudança do vilarejo para três quilômetros abaixo, às margens do rio Araguaia, a população continuou a freqüentar a fazenda Santa Rita. Um dos motivos é porque lá estava situada a Igreja de Santa Rita dos Impossíveis. No entanto as visitas não eram motivadas somente pela religiosidade, mas também pela necessidade, pois a casa de comércio de José Salgueiro, também ficava na Fazenda Santa Rita. Esta casa de comércio fornecia mercadoria para toda a região, e dada a sua importância, a antiga vila foi apelidada por “Comércio de Cima”.

A formação histórica da sociedade Santarritense é constituída por descendentes das tribos tupis-guaranis-bororos, os quais viviam na região por milhares de anos e também pela comunidade afro-brasileira oriunda da micro região Serra do Caiapó, a qual é composta pela serra da Urtiga, pelo Buracão e o Córrego Quilombo. Também fazem parte dessa miscigenação os colonizadores que vieram de várias partes do país especialmente os paulistas e mineiros, que vieram para o sudoeste goiano em busca de extensas faixas de terras férteis para explorar a atividade econômica agropastoril.




Do diamante ao gado

Menino ainda Archimedes Machado Valadão achou uma nota. Mesmo sem saber quanto valia, conseguiu comprar de um garimpeiro alguns equipamentos para mineração de diamantes. “Achei diamante e com dinheiro ajudei meu pai”, lembra emocionado. A econômia da época começou com o garimpo de diamantes no rio Araguaia, mas após a febre do garimpo ela se restringiu à agropecuária.

O interesse econômico se concentrava nas minas de ouro e diamante dos rios Araguaia, Garças e seus afluentes. O número de deslumbrados pelos diamantes crescia a cada ano. A notícia havia se espalhado pelo Brasil, principalmente nos estados de Mato Grosso, Bahia, Maranhão e Piauí. Isso atraiu garimpeiros e outras pessoas interessadas em fazer fortuna rápida. Uns vieram para explorar o garimpo, outros os garimpeiros. O que não faltavam eram mulheres levantando as saias, bebida farta e variada. Quando as bebidas e as mulheres não consumiam o dinheiro dos garimpeiros, o jogo travava de fazê-lo.

A riqueza e a felicidade almejada pelos caçadores de fortuna, na maioria não passava de sonho. A realidade que encontravam era outra, privações, doenças e muitas vezes até a morte.

Com o descontentamento com a mineração, os migrantes na maioria constituídos por nômades, deixaram a região e foram embora com seus sonhos utópicos de riqueza. Após esse momento de crise da mineração, a pecuária que já era praticada na região tomou conta da economia. O clima e a vegetação de cerrado favoreciam a criação de gado extensiva, os animais eram criados soltos sem a barreira de cercas. O que ocasionou um problema, os rebanhos se tornavam “brabeza” - animais sem domesticação. A agricultura de subsistência foi aos poucos evoluindo e auxiliou no fortalecimento da economia.

A criação do município

O novo povoado foi tomando impulso com o nome de Santa Rita do Araguaia, até que na divisão administrativa de 1911 ele aparece como distrito de Mineiros e a povoação constituída naquele pequeno ponto do Centro-Oeste brasileiro começa a se separar pelos nomes: Santa Rita de Mato Grosso para os moradores à margem esquerda do Rio Araguaia - hoje Alto Araguaia - e Santa Rita de Goiás para os da margem direita do rio, hoje Santa Rita do Araguaia.

Em 1943 Santa Rita de Goiás passa a ser denominada Ivapé, termo tupi que significa “Caminho das Frutas”. O nome foi alterado em 1953, quando o até então distrito foi elevado à categoria de município, o qual voltou a se chamar Santa Rita do Araguaia. “Meu pai fez um abaixo assinado e colheu assinaturas para que Santa Rita fosse emancipada”, relata Valadão. O seu pai, Honorato Machado Valadão, foi vereador do município por duas vezes. Ainda existe umakk polêmica quanto ao nome do município. Alguns preferem homenagear a santa padroeira, já outros optam pela homenagem aos povos primitivos que habitaram a região.

“Meu padrinho foi primeiro prefeito eleito pelo voto”, ressalta Valadão. Jerônimo Machado Valadão iniciou seu mandato em 1955. Ele substituiu Ivo de Moraes Cajango, nomeado pelo Governador Pedro Ludovico Teixeira em 15 de maio de 1954.

Festa de Maio: religiosidade e fé

Como o próprio nome da cidade sugere, a comunidade santarritense é religiosa e tem como sua tradição principal a festa dedicada à Santa Rita dos Impossíveis, que acontece todo ano no mês de maio, por isso ficou conhecida como “festa de Maio”. Ela começou na capela do primeiro povoado e hoje é realizada na igreja matriz no centro da cidade.

Há várias possibilidades de conhecer a história do município de Santa Rita do Araguaia. Uma é andar pelas ruas da cidade observando as placas nas esquinas. Nelas estão os nomes dos personagens de destaque da história ou como dizem os moradores desta pacata cidade “parar para ter um dedinho de prosa”. A história do município continua viva na mente e no coração dos Santaritenses, os quais orgulham em contá-la.

Fontes documentais:

CAJANGO, José Ferreira. Ligeiro Histórico de Santa Rita do Araguaia. Santa Rita do Araguaia-GO: 1989

SALGUEIRO, Sebastiana Carvalho. Brasis D’Antanho.1ª ed. São Paulo: 1999.

OLIVEIRA, Altair Machado. Alto Araguaia dos Garimpos à soja. Cuiabá-MT: 1998.

Arquivos fotográficos da prefeitura municipal de Santa Rita do Araguaia.

Fontes vivas:

Archimedes Machado Valadão.

Espírito Santo Ferreira.

Brasilina Ana Souza.

Mito da democracia racial numa visão Bakhtiniana


Em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem, Mikhail Bakhtin tem o propósito de acrescentar algo a teoria de Marx. Para o autor, as bases de uma teoria marxista da criação ideológica, estão estreitamente ligadas aos problemas da filosofia da linguagem. Bakhtin se opõe ao idealismo e ao psicologismo, é neste terreno que ele questiona a causalidade e a especificidade dos fatos.

O pensador russo chama a atenção para as propriedades da palavra: pureza semiótica, neutralidade, implicações na comunicação humana diária, interiorização e ubiqüidade. De acordo com Bakhtin a palavra quando chega ao corpo social e interage com as pessoas perde algumas dessas propriedades. É o que ocorre com a pureza semiótica e a neutralidade, em si o signo é neutro e puro, apenas um significante, mas em contato com a sociedade toma significados e constitui-se de tendências ideológicas.

A ideologia não muda de forma abrupta, ao contrário ele muda paulatinamente. Bakhtin acredita que as ideologias sofrem mudanças lentas, mas continuas, as quais se iniciam na infra-estrutura. As transformações passam primeiro pela palavra, pelos discursos que se constroem na realidade social, para depois atingirem a superestrutura. Segundo o autor a infra-estrutura compõe a base da sociedade, as informações, fatos e desenvolvimentos essenciais para a composição social de uma determinada sociedade. Enquanto a superestrutura refere-se aos reflexos que as transformações na infra-estrutura acarretam quando buscam novos perfis. São basicamente elementos e relações sociais criados e administrados pela infra-estrutura. Esta análise parte de um elemento da superestrutura: a mídia.

Ao longo da história da humanidade, cada sistema de dominação cria recursos que os sustentam e até justificam. Na sociedade contemporânea, o poder da mídia torna-se cada vez mais absoluto. Nas relações sociais, tem o domínio aquele que melhor articula os meios de comunicação social, a fim de garantir a hegemonia.

A imprensa é um filtro, a intermediária entre o fato e a versão que nos é apresentada, essa versão chega carregada de tendências político-ideológicas, que são absorvidas pelo grande público sem que se dê conta disso.

Ciente do poder que é delegado a imprensa procurei analisar o seu foco de abordagem com relação ao tema: o dia da Consciência Negra. A mídia brasileira consegue e, com certa eficiência, alimentar a sociedade com a utopia da democracia racial, a ilusão de que todas as etnias vivem harmoniosamente. Os veículos de comunicação são utilizados para impor um estereótipo social que vá de encontro aos interesses da classe dominante, novelas, filmes, ou mesmo noticiário televisivo e jornais impressos têm contribuído significamente para a consolidação desses estereótipos. Os papéis destinados à população afro-descendente são geralmente, serviçais, malandros ou criminosos da periferia.

O enunciador (imprensa) produz com seu discurso um efeito que camufla as ideologias pregadas por ele, há uma refração do real. Omite-se em abordar a realidade dos fatos no que diz respeito à questão racial. Existe por traz desta omissão o enorme problema social, pois não há interesse da classe dominante em construir um país racialmente justo. Certamente são muitos os fatores que determinam o conteúdo discursivo veiculado pelos jornais e vão desde os aspectos mais particulares ligados, por exemplo, à participação política de membros ligados ao jornal ou ao apoio financeiro oferecido pelos órgãos do governo a essas empresas.

Procurei entender as causas e efeitos dessas escolhas às tendências ideológicas e interesses político-econômicos determinantes na produção discursiva, bem como a realidade criada a partir desse produto e através dele refratada socialmente, considerando sempre o grande alcance e poder de aceitação pública da imprensa.

Para Bakhtin cada época e cada grupo social têm seu repertório de forma de discurso na comunicação sócio-ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas. Através de uma pesquisa na internet ficou constatado que o volume de material divulgado enfocando o dia da Consciência Negra foi muito pequeno. Quando era lembrado não tratava da questão primordial: O racismo.

Esta análise buscou compreender os processos de significação presentes nos discursos da imprensa sobre esse tema, procurou desvelar outros sentidos ali presentes e o modo como ele se constitui. Sobretudo, o pretendido foi mostrar que as escolhas de enfoque, não são ingênuas ou aleatórias, elas revelam um sujeito discursivo, sua visão de mundo e seus interesses em um jogo interlocutivo em que ele detém o poder.

Bakhtin acredita num processo de evolução social dialético que procede da infra-estrutura e vai tomar forma na superestrutura. Pode considerar que a igualdade racial ainda está em processo evolutivo, de forma lenta e gradual. Esta mudança é continua, ela está ocorrendo desde o descobrimento do Brasil. Já esteve na infra-estrutura dos quilombos, passou pela palavra, pelos discursos de libertação dos escravos e com a lei Áurea desenvolve o processo para chegar a superestrutura. No entanto a mudança ainda não aconteceu, depois de mais de quinhentos anos a igualdade racial ainda não chegou a superestrutura, teima em ficar interne nas bases dos processos de evolução social (infra-estrutura), através da prática da discriminação racial, mas acredito que possa terminar o caminho descrito por Bakhtin e para que possamos extirpar esse tumor chamado racismo.